Alimentação é um assunto complicado. Em todo o mundo, mais de 10% das pessoas passam fome, cerca de 25% estão acima do peso ou obesas e outros 25% carecem de micronutrientes, podendo estar sub ou superalimentadas.
O fato é que se alimentar abrange muito mais do o simples ato de comer. Muito antes de chegar às prateleiras dos supermercados, o processo de produção de alimentos desencadeia múltiplos fatores que afetam nosso tempo e qualidade de vida na Terra. Florestas são desmatadas para criar espaços agrícolas, o que aquece o ar atmosférico, reduz sistematicamente a biodiversidade, destrói as barreiras naturais que protegem os seres humanos de vírus de origem animal – como o COVID-19 –, contramina o solo e a água e infunde os animais e plantas com substâncias tóxicas.
Com a população global prevista para alcançar 10 bilhões de pessoas até 2050, faz sentido nos perguntarmos como conseguiremos alimentar todo mundo.
Aliás, uma pergunta ainda mais interessante é: como fazer isso sem causar mais danos ao planeta?
Abaixo, vamos entender um pouco mais sobre este assunto.
Há comida suficiente para todos nós.
Embora tenhamos estagnado na luta contra a fome nos últimos cinco anos, evidências sugerem que o problema que enfrentamos hoje não é a falta de alimentos. Pelo contrário, é um problema relacionado à ineficiência do sistema alimentar. Há falhas em todo o processo de produção e consumo, a começar com o uso da terra. Por exemplo, como uma resposta à crescente demanda por carnes e laticínios, cerca de 60% das terras agrícolas do mundo são usadas para a atividade pecuária.
Além disso, perdemos cerca de um terço dos alimentos produzidos – entre a fazenda e a mesa, enquanto eles são armazenados, transportados, processados, embalados, vendidos e preparados –, pois compramos mais do que consumimos. No fim das contas, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou desperdiçadas a cada ano.
"Não podemos resolver um problema e criar outro, ou seja, produzir mais comida apenas para desperdiçá-la", explicou a chefe do Programa de Sistemas Alimentares Sustentáveis do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Clementine O’Connor.
Não é só matemática.
Ao supor que mais comida significa menos fome e mais riquezas significam mais saúde – já que rendas maiores permitem que as pessoas comprem mais comidas –, a sabedoria convencional adotou a quantidade como a solução para o problema da fome.
Contudo, as tendências a longo prazo revelam que a equação não é tão direta.
Embora tenhamos reduzido consideravelmente a pobreza – de 36% em 1990 para 10% em 2015 –, os esforços para acabar com a fome não foram tão bem-sucedidos. Após décadas de declínio constante, mas leve, ela voltou a aumentar em 2015, dessa vez acrescida da desnutrição, uma nova preocupação crescente. Agora, muitos países enfrentam um problema duplo, com a desnutrição de um lado e o sobrepeso e a obesidade do outro.
Muitas das práticas de produção intensiva de alimentos resultaram em grandes problemas ambientais e de saúde. A agricultura intensiva criou um círculo vicioso, que afeta imediatamente e a longo prazo a segurança alimentar. A expansão da produção agrícola exige o desmatamento de árvores e a morte de animais selvagens; o desmatamento contribui para as mudanças climáticas; as mudanças climáticas favorecem a ocorrência de inundações, secas e tempestades, o que resulta em maior insegurança alimentar.
Outro fator preocupante é o uso de pesticidas e fertilizantes para garantir maior rendimento à produção de alimentos. Além de poluir terra e água, causando a perda da biodiversidade, eles também intoxicam cerca de 25 milhões de pessoas a cada ano. O glifosato – herbicida mais utilizado no mundo –, por exemplo, está associado ao surgimento do Linfoma não Hodgkin (LNH) e de outros tipos de câncer.
A natureza é essencial para a agricultura e a nutrição.
Não podemos ignorar nem enganar o meio ambiente. Na verdade, precisamos trabalhar a seu favor para produzir alimentos mais saudáveis e sustentáveis.
Atualmente, 60% de nossas dietas derivam de apenas três culturas de cereais: arroz, milho e trigo, resultado das práticas de plantações geneticamente uniformes e de alto rendimento adotadas pelos agricultores. Consequentemente, quase uma em cada três pessoas sofre de algum tipo de desnutrição.
Além disso, as mudanças climáticas podem agravar ainda mais esse cenário. Uma pesquisa da Universidade de Harvard sugere que, se as culturas forem expostas aos níveis de CO2 previstos para 2050, elas poderão perder até 10% de zinco, 5% de ferro e 8% de proteína.
A natureza é nossa aliada.
Ao reconhecer o valor da natureza, podemos perceber que um sistema alimentar abrangente pode beneficiar simultaneamente o meio ambiente, a saúde pública e a economia.
Reduzir a emissão de CO2 pode afetar positivamente o valor nutricional dos alimentos – o que beneficiaria significativamente nossa saúde, uma vez que 76% da população mundial obtém a maior parte de seus nutrientes das plantas –, assim como pode reduzir o risco de eventos climáticos extremos, e, consequentemente, proteger o rendimento das colheitas. Isso é particularmente importante para os pequenos agricultores. Proteger a natureza significa proteger os meios de subsistência e as economias.
Sendo assim, restaurar a biodiversidade significa fortalecer a resiliência dos sistemas alimentares, o que permite que os agricultores diversifiquem suas produções e lidem com pragas, doenças e mudanças climáticas, reduzindo também a propagação de zoonoses e seus impactos econômicos – como o que estamos enfrentando atualmente.
A adoção de dietas baseadas em vegetais requer menos uso de terras, produz menos gases de efeito estufa e exige menos uso de água, além de também desempenhar um papel importante na redução de doenças crônicas – como doenças cardíacas, derrames, diabetes e câncer – e de custos associados a tratamentos e a perda de renda. Além disso, com a estimativa global de doenças crônicas projetada para atingir 56% até 2050, as dietas desempenharão um papel cada vez mais importante na gestão econômica.
Precisamos reformular os sistemas alimentares para suprir as necessidades de 10 bilhões de pessoas de maneira segura e sustentável.
"É necessário considerar todo o sistema alimentar – da produção ao consumo –, e entender cada um de seus componentes – por exemplo, como eles se relacionam e quais seus impactos imediatos e a longo prazo", disse Clementine O´Connor.
A agricultura precisa ser reconhecida como uma solução para a perda da biodiversidade, as mudanças climáticas e a poluição. Precisamos migrar para modelos regenerativos ou agroecológicos que contribuam com paisagens e ecossistemas mais saudáveis.
As políticas devem ser construídas com a colaboração de várias partes interessadas e devem abordar de forma abrangente os sistemas alimentares, valorizando o capital natural, promovendo o uso sustentável da terra, prevenindo a poluição e a degradação ambiental e possibilitando aos produtores a oportunidade financeira de inovar em modelos mais sustentáveis.
Além disso, também é essencial a mudança de comportamento por parte dos consumidores, no sentido de adotarem dietas saudáveis e sustentáveis e práticas de prevenção de desperdício de alimentos – através da educação, conscientização, fortalecimento de ligações urbano-rurais e ambientes alimentares acolhedores.
A sustentabilidade ambiental não é um luxo. Ela não pode vir do acaso ou de uma reflexão tardia. Pelo contrário, ela é essencial para a sobrevivência humana. Agora, mais do que nunca.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) apoia a transição para sistemas alimentares globais que impactem positivamente a nutrição, o meio ambiente e os meios de subsistência dos agricultores. Para contribuir com o Programa de Sistemas Alimentares Sustentáveis da One Planet Network, o PNUMA liderou o desenvolvimento de uma diretriz para a formulação de políticas colaborativas e a melhoria da governança.
O PNUMA também é responsável pelo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12.3, que compromete os Estados membros a reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita do varejo e do consumidor. Com o Índice de Desperdício de Alimentos (Food Waste Index, em inglês), o PNUMA está moldando os dados globais de desperdício de alimentos e preparando uma metodologia harmonizada que permitirá aos países acompanhar o progresso rumo ao ODS 12.3.