04 Jun 2020 Reportagem Nature Action

Novo relatório da ONU sobre zoonoses será lançado em julho

No último século, uma combinação de crescimento populacional e perda de ecossistemas e de biodiversidade favoreceu o surgimento de doenças zoonóticas – patógenos transmitidos de animais para seres humanos. Em 2016, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária (ILRI) sinalizaram um aumento mundial no número de epidemias zoonóticas.

Esse ano, com o surto de COVID-19, que afetou todos os países do mundo, o PNUMA, juntamente com alguns pesquisadores do Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária, realizou uma avaliação para consolidar o conhecimento sobre essa questão e identificar áreas em que seja necessário maior enfoque político. Intitulado Prevenindo Futuras Pandemias: Como Quebrar a Cadeia de Transmissão das Doenças Zoonóticas (Preventing the Next Pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission, em inglês), esse relatório será publicado em julho.

Em preparação para o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho), a Chefe de Vida Selvagem do PNUMA, Doreen Robinson, e o Professor de Doenças Infecciosas em Animais da Universidade de Liverpool, Eric Fèvre, explicaram como prevenir e controlar as zoonoses no futuro.

Qual a relação entre as doenças zoonóticas e a biodiversidade?

Robinson: A relação entre o meio ambiente e o surgimento e disseminação das doenças é complexa. No último século, a natureza mudou completamente: o crescimento populacional e as mudanças no uso da terra associadas a assentamentos humanos, agricultura, exploração madeireira, indústrias extrativas, dentre outros usos, levaram à perda de habitat e de biodiversidade. Isso permitiu a disseminação de patógenos entre animais e seres humanos, pois as barreiras naturais que os distanciava desapareceram. Também sabemos que uma maior biodiversidade nativa dificulta a transmissão de doenças zoonóticas.

Mudanças na temperatura, na umidade e na sazonalidade afetam diretamente os micróbios no meio ambiente. À medida que alteramos os habitats, alteramos essas condições. Pesquisas indicam que as epidemias se tornarão mais frequentes conforme o clima continuar mudando. Também não podemos esquecer que muitos medicamentos e tratamentos humanos derivam da diversidade biológica. Ao interromper a perda de biodiversidade e investir na saúde do planeta, protegemos a saúde humana.

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Testagem de doenças em animais em Bako, Etiópia. Photo by ILRI/Barbara Wieland

A transmissão do coronavírus tem sido associada aos mercados úmidos tradicionais. Eles devem ser proibidos?

Fèvre: Muitas vezes, o termo “mercado úmido” é mal compreendido e carregado de julgamento. Chamamos os mercados de alimentos frescos de mercados úmidos. A venda de baixo volume de alimentos frescos é essencial para milhões de pessoas terem acesso a alimentos mais baratos no dia a dia. Proibir esses mercados seria ignorar seu papel essencial na segurança alimentar e nos meios de subsistência das pessoas que trabalham ali – geralmente em sistemas de mercados informais. Mais importante do que os proibir, devemos pensar em como eles são gerenciados, fornecer apoio e, quando necessário, criar legislações que garantam ambientes propícios à segurança alimentar e à saúde pública.

Uma questão relacionada, mas distinta, é a venda de produtos derivados de animais selvagens nesses ambientes. É importante garantir que não haja venda de produtos oriundos da caça ilegal, o que pode exigir uma legislação comercial forte e bem aplicada. No entanto, impedir a venda ilegal de animais selvagens não deve ser confundido com proibir o mercado em si.

Porque o impacto do COVID-19 variou de um país para outro?

Fèvre: O comportamento, a interação e as características demográficas das populações em diferentes países e regiões não são iguais. Na África Subsaariana, por exemplo, as populações urbanas tendem a ser mais jovens do que na Europa. As interações sociais e econômicas também variam, de modo que as formas de contato entre as pessoas seguem padrões muito diferentes. Algumas regiões do mundo são menos conectadas globalmente do que outras, o que significa menor tráfego de pessoas infectadas. Alguns países também tomaram medidas de prevenção antes que outros, o que impediu a disseminação precoce, rápida e silenciosa do COVID-19, como ocorreu em outros lugares.

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Venda de carne de porco em um mercado vietnamita tradicional.

Photo by ILRI/HUPH/Ngan Tran
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O COVID-19 é um de diversos coronavírus que eclodiram nas últimas décadas. Devemos aceitá-los como algo normal ou há formas de evitá-los?

Fèvre: Devemos sim esperar o surgimento de novos coronavírus e também de outros vírus. Dada a nossa pegada na Terra, o surgimento do COVID-19 não nos surpreende. Contudo, é espantosa a rapidez com que ele se tornou um problema global. Podemos prevenir a disseminação e as consequências econômicas devastadoras das pandemias por meio de vigilância rotineira dos locais de alto risco e da incorporação dos riscos das doenças nos processos de tomada de decisão nas redes de transporte e comércio.

Robinson: Enquanto ainda investigamos as ligações entre meio ambiente e a pandemia atual, sabemos que podemos mitigar o risco de zoonoses se investirmos na saúde dos ecossistemas e impedirmos a perda e a degradação de habitats. Também podemos diminuir os riscos ao melhorarmos os padrões sanitários e de biossegurança na cadeia de valor dos alimentos. É importante investirmos no âmbito da One Health para integrar a prevenção de doenças zoonóticas nas dimensões humanas, animais e ambientais a níveis internacional, nacional e local.

Sabemos que o relatório não será publicado antes de julho, mas há algo que você possa revelar com antecedência?

Robinson: O risco de doença zoonótica está associado à atividade humana no planeta – variando com a intensificação da agricultura e a maior demanda humana por proteína animal, as mudanças nas cadeias de suprimento alimentares, a exploração da vida selvagem, a necessidade de mais viagens e transporte, dentre outros. Precisamos trabalhar nessas causas. E é isso que o relatório nos mostra.

Outro ponto principal que esperamos que as pessoas tirem do relatório é que não podemos nos dar ao luxo de voltar ao que éramos antes da crise. Precisamos nos reconstruir melhor. Nossas respostas políticas precisam ter base científica e diferenciadas das realidades associadas ao surgimento de doenças zoonóticas e aos contextos sociais, econômicos e culturais de diferentes países. Precisamos sensibilizar as pessoas sobre os riscos à saúde e ao meio ambiente, expandir nossos conhecimentos científicos sobre as doenças zoonóticas através de abordagens multissetoriais que vinculem saúde humana, animal e ambiental, e aprimorar o monitoramento e a regulamentação existentes para mitigar riscos específicos. Nossa melhor chance será operacionalizar uma abordagem no âmbito da One Health para dividir os silos da saúde humana, animal e ambiental.

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